O mestre de música Esaú Pinto é filho prodígio da cidade de Rio de Contas, situada na Chapada Diamantina, a 748 Km de Salvador. Tradicional lavra de ouro e diamantes a cidade guarda a lembrança dos anos prósperos: a bela arquitetura das casas, a cadeia e a igreja de Senhora Santana, um prédio inacabado, mas raríssimo em seu estilo com três naves e capela-mor. São famosos também seus artesãos e músicos.
O mestre Esaú dividia suas atividades entre a música e a profissão de farmacêutico, aviador de fórmulas. Regeu bandas em sua cidade, outras na sua região até Minas Gerais. Faleceu em 1985, a bordo de um ônibus entre Rio de Contas e Salvador, trazendo inclusive o depoimento que se segue, em manuscrito.
A leitura desta autobiografia nos permite conhecer um pouco da formação de um músico no interior, nomes de bandas e pessoas e até episódios históricos de projeção maior, como a passagem da coluna Prestes pela Chapada Diamantina. Enquanto compositor suas principais obras foram os dobrados “Gilson”, “Luiz Pinto” e “Paulo e Junior”, dedicados aos seus netos, além da valsa “Lina” e do bolero “Sonhos de Primavera”.
É com extrema felicidade que vejo ser publicada a história deste que foi pessoalmente um amigo, cujas obras por várias vezes executamos com a oficina de frevos e dobrados.
Fred Dantas
Esaú Pinto (autobiografia) Eu, Esaú Pinto, nascido em dezoito de dezembro de mil novecentos e onze. Com a idade de oito anos freqüentei a escola primária, mas não fui feliz para continuar, pois morreu meu pai, e nós uma família muito pobre. Fui forçado a abandonar as aulas para trabalhar para defender o pão, não foi possível aprender quase nada, pois era só um professor para cento e quarenta alunos, eu ficava sempre na traseira pedindo àqueles alunos mais adiantados para me ensinar as lições.
Em mil novecentos e vinte e um, um velho músico que existia aqui convidou meu irmão mais velho, Antônio, para ensinar as primeiras lições de música, essas aulas não eram em lugar próprio para esse fim e sim na calçada do passeio da residência desse velho, pois existia no local uns degraus altos e, era ali naquele local que meu irmão ia solfejar essas primeiras lições, eu gostava muito de música, ficava assistindo com muito interesse, como o velho notou que eu estava com muita vontade de aprender ele me falou: - vamos ver se você solfeja essas primeiras lições, e eu, com muita coragem solfejei aquelas primeiras seis lições, como sejam breve, semibreve, mínima, semínima, colcheia e semicolcheia .
Ele me falou, bom como você está com muita vontade de tocar, eu tenho um trombone velho, vou lhe dar para você aprender a escala, depois você vai praticando nas partituras, o instrumento era daqueles verticais que se usava antigamente, era francês, e mesmo velho e colado de cera de abelha era afinado, eu fui tocando junto com os outros sem conhecer quase nada de música, era tudo de ouvido, e assim aconteceu quando veio a festa do Primeiro Centenário da Independência em mil novecentos e vinte e dois, eu já tocava junto com os outros, já no ano seguinte, surgiu um terno de Reis na casa do Juiz de Direito da Comarca Dr. Nelson Dórea.
Como aqueles assistentes notaram que eu estava com o instrumento naquelas condições, um deles me chamou e falou comigo, vou fazer uma vaca para arranjar dinheiro a fim de comprar um instrumento novo para você, e combinou com os outros, arranjaram dinheiro na quantia de duzentos e quarenta mil réis, foi quanto custou o bombardino que me ofereceram, este eu conservo até o fim da minha vida com muito ciúmes, pois ele me faz lembrar daquele tempo que eu fazia dele tudo que queria.
Em mil novecentos e vinte e quatro surgiu o mestre Alexandre Ramos Braga, músico aposentado do Primeiro Corpo da Bahia, no tempo do Maestro Wanderley, este mestre deixava pra mim todos os solos das músicas executadas, inclusive da Sinfonia “O Guarani”, que executávamos quase com perfeição, isso na Filarmônica Guarani, contando com mais ou menos vinte músicos, infelizmente esse mestre sofreu um derrame, morrendo instantaneamente.
Em mil novecentos e vinte e seis, com a morte do mestre, aqueles músicos já velhos, não sei porque, resolveram me botar como regente da banda, e eu com muito orgulho aceitei. Nessa ocasião existiam duas bandas de música em Rio de Contas, Guarani da qual eu era o regente, e Lira dos Artistas, na regência do Sr. Juvenal Cândido Oliveira, era uma grande política entre elas, pois cada qual procurava meios para fazer melhor. Também neste mesmo ano, quando da passagem dos revoltosos (Coluna Prestes) por esta cidade, atrás deles vinha a Força Gaúcha em perseguição aos mesmos, e aqui permaneceram uns trinta dias. No meio deles tinha três músicos, um sargento, um cabo e um soldado.
Falaram de mim com eles e os mesmos convidaram-me para tocar com eles e todas as noites nós tocávamos, havia um tenente chamado Alvino que gostava muito de música, este era meu protetor, todos os dias quando terminavam as farras, ele ia me levar em casa, e o mesmo me convidou para ir com eles para o Rio Grande do Sul, e eu, aceitei, mas quando falei com minha mãe e irmãos, todos eles se revoltaram e não deixaram que eu fosse.
Em mil novecentos e vinte e sete quando o governador Góes Calmon foi visitar a cidade de Caetité, fomos convidados para fazer uma recepção ao mesmo, nós fomos e fizemos tudo para agradar aos recepcionistas, saímo-nos muito bem, até fui levado nos braços para onde estava hospedado. Neste mesmo ano fui convidado para reger uma pequena Filarmônica perto de minha cidade num lugar por nome Mato Grosso, eu contratei com os mesmos e ia lá dar ensaios dois dias na semana, logo surgiu contrato para outro local chamado Furna (hoje Arapiranga) distrito de Rio de Contas, também aceitei ficando responsável pela regência de três bandas, a Guarani, em Rio de Contas, Lira Santo Antônio, em Mato Grosso, e a Lira São Bernardo, em Arapiranga.
Veio uma seca muito forte no sertão arruinando muito, e eu fui dispensado dos dois contratos, fiquei somente com a Guarani, da qual não recebia nenhum dinheiro. No mês de abril de mil novecentos e trinta e quatro tive convite do Sr. José Cangussú, prefeito de Espinosa, no Estado de Minas Gerais, para reger a Filarmônica local, segui viagem em oito de maio seguinte. Lá me casei no dia oito de junho de mil novecentos e trinta e seis. Ganhei meu primeiro filho em quatorze de setembro de mil novecentos e trinta e oito, permaneci lá até o ano de mil novecentos e trinta e nove, quando surgiu outra seca, havia um atraso no meu pagamento (ordenado), e resolvi voltar para o meu Rio de Contas.
Viajei de volta no dia doze de maio do mesmo ano. Em setembro fui convidado a ir a Piatã a fim de reger a Filarmônica Bonjesuense, segui viagem para este local no dia dezoito do mesmo mês. Lá nasceram três dos meus filhos, permaneci até abril de quarenta e quatro, quando fui convidado para reger a Filarmônica de Católes (distrito de Piatã, hoje distrito de Abaíra) com melhores vantagens, segui viagem em vinte e cinco do mesmo mês abril, lá nasceram mais dois filhos. Nessa Vila, eu era regente de banda local, e comerciante de produtos farmacêuticos, quando surgiu em Rio de Contas uma farmácia disposta à venda, eu arranjei sócio e fiz o negócio com o dono da farmácia, seguindo viagem em vinte e oito de abril de quarenta e oito. Aí fui dar assistência à Lira dos Artistas que era minha rival até mil novecentos e trinta e quatro, quando fui forçado a deixar minha terra em busca de um meio melhor der vida.
Com minha saída para Espinosa, a Guarani foi desaparecendo, não existindo desde o ano de trinta e oito. Em Rio de Contas, nasceu mais um filho em cinco de julho de mil novecentos e quarenta e oito. Em quarenta e nove comprei a parte da farmácia do meu sócio, continuando no comércio, em vinte de dezembro do mesmo ano nasceu a última filha da minha primeira mulher, que infelizmente desapareceu falecendo em vinte e oito de janeiro de cinqüenta e dois. Eu fiquei tão desorientado que abandonei a música por algum tempo, pois estava com oito filhos menores sem ter a assistência da mãe, e eu que estava à frente de tudo, no lugar de pai e mãe, mas com o tempo foi melhorando aquela situação, porque não dizer aquela paixão que descontrolava toda minha vida, quando surgiu uma moça quase da minha idade (Lyra de Castro Trindade) uma pessoa muito fina, uma santa disposta a casar comigo, eu aceitei, pois precisava de uma pessoa que zelasse pelos meus filhos como se fosse mãe.
Assim aconteceu, me casando pela segunda vez, no dia vinte e quatro de fevereiro de mil novecentos e cinqüenta e quatro, nessa ocasião já voltava a vontade de continuar com a música. Já em quatro de novembro de cinqüenta e seis nascia meu primeiro filho da segunda mulher, em seguida em quinze de março de cinqüenta e oito, nascia a segunda filha (Ana Maria) que é a que mora comigo, me zelando da melhor forma possível que um filho pode fazer por um pai, depois em vinte e sete de abril de cinqüenta e nove nasceu meu último filho no total de onze, que me orgulho tanto em possuir filhos tão bons, e que adoro tanto.
Assim foram se passando os anos, eu sempre à frente da regência da Lira dos Artistas, isso sem nenhum ordenado ou interesse de dinheiro, pois faço tudo que me é possível, até gastando dinheiro do meu próprio bolso para mantê-la. Hoje sou aposentado no comércio pelo INPS, estou feliz, pois ganho o suficiente para viver como pobre, não pensando mais nas dificuldades que vivi na minha mocidade, para dar alimentação e a educação que me foi possível aos meus filhos.
Outrossim, em mil novecentos e setenta e seis quando casou Ana Maria, minha mulher adoeceu, sofrendo mais de três anos e eu fiz de tudo que possível para lhe dar saúde, tudo em vão, quando Deus a chamou no dia vinte e quatro de setembro de setenta e nove. Assim vou vivendo pedindo a Deus vida e saúde para continuar com a música até o fim da minha vida.
Rio de Contas, 12 de agosto de 1985.
Esaú Pinto