O meu primeiro pouso, no que viria a se tornar a primeira grande reportagem da minha vida, foi em Barra/Bananal, ou Barra do Livramento como é oficialmente conhecido. O povoado fica cerca de 20 quilômetros distante do município de Rio de Contas, na Chapada Diamantina. Pela primeira vez, entendi o significado paradoxal da frase “a beleza da miséria”. Encravada entre paredões de rocha, na beira do rio das Pedras, com aquela vegetação selvagem, meio agreste, da Chapada, pensei ter chegado ao paraíso. Essa Sangri-la baiana porém, não tinha água encanada, asfalto, luz elétrica. A população era descendente de africanos e os mais jovens, em idade produtiva, migravam para os centros urbanos maiores em busca de condições de vida mais dignas. Havia muitos idosos, que guardavam a história do quilombo na memória e muitas crianças abaixo de 12 anos, pequenas demais para tentar a sorte em outro lugar ou para serem seduzidas pelo consumo moderno. Uma peculiaridade, a sonoridade do português falado no quilombo lembrava o sotaque lusitano misturado com o iorubá que só conheci através de pontos de Canbomblé. Era lindo! As versões para a origem do povoado eram inúmeras: uns diziam que no século XVII, um navio negreiro naufragou próximo a ligação entre o rio de Contas e o mar e que os africanos sobreviventes fugiram e chegaram num antigo mocambo abandonado pelos índios. Outra versão, dá conta de que em 1690 existia um quilombo chamado Pouso do Crioulos, situado onde hoje é o município de Rio de Contas. A história oficial atesta que em 1811, o povoado de Barra/Bananal já existia. Segundo um pesquisador autodidata que conheci na época, seu Lindembergue, no começo do século XIX, diversos colonos brancos se estabelecaram a 1,5 mil metros de altitude, fundando o povoado de Mato Grosso e quando lá chegaram, já encontraram a comunidade vizinha (Barra/Bananal) habitada exclusivamente por negros. Um fato curioso ocorreu do encontro dos dois grupos. Formada na maioria por foragidos da justiça ou famílias que tinham pendências com a Inquisição Portuguesa, a população branca de Mato Grosso decidiu nunca revelar a localização de Barra/Bananal para os caçadores de escravos, pois temiam que os mesmos oficiais que perseguiriam os negros, poderiam entregar Mato Grosso ao santo ofício. O pacto de silêncio, feito em nome da sobrevivência, trazia também as marcas da segregação racial que em 2000, ainda fazia com que os dois povoados se respeitassem à distância, mas não mantivessem relações. Casamento interracial então, nem pensar. Tanto no quilombo quanto na comunidade branca, a ideia era inconcebível e as uniões consanguíneas eram a norma. Nascida e criada em uma família interracial, me deparei pela primeira vez, fora dos livros, com a realidade do “racismo cordial brasileiro”, que na minha opinião, não tem nada de cordial e é tão universal quanto o racismo de qualquer outro lugar no mundo.
O outro povoado visitado durante a reportagem chama-se Rio das Rãs / Brasileiras e ficava a cerca de 70 quilômetros de Bom Jesus da Lapa, no outro lado do Estado. Lembro que chegar a esse quilombo me fez sentir como uma espécie de Indiana Jones. A estrada era ruim, 70 quilômetros de buracos. Depois, chegamos (eu, fotógrafo, motorista do carro do jornal) a uma cerca de arape farpado que demarcara o começo das terras do quilombo. Tivemos de pular a cerca, porque não havia porteira. O carro ficou trancado e estacionado sob uma árvore, do outro lado do arame. Um lavrador tinha vindo nos receber. Perguntei onde ficava o povoado e ele disse, num jeito típico do baiano do interior, “ali pertinho”. O pertinho do moço eram sete quilômetros a pé, um trecho de canoa pelo caudaloso rio das rãs (afluente do São Francisco) e mais uma caminhada de quilômetro e meio até surgirem as primeiras casas. Rio das Rãs era um lugar marcado por mais de vinte anos de intensas lutas pela posse da terra. Grileiros tentaram expulsar os quilombolas de seu território e a população era muito desconfiada. Comi muita farinha seca, acocorada próxima a um forno de barro, para vencer a resistência daquele povo sofrido em falar de sua vida para uma repórter que, apesar de descendência negra, tinha a pele clara e o “cabelo bom”.
Dessa experiência, guardo as frases ouvidas da boca de gente como Seu Chico de Helena, 78 anos, memória prodigiosa, me ensinou a pescar de tarrafa (rede tecida com folhas de uma planta chamada croá) e cambambão (uma armadilha com folhas para pegar peixe); lembro ainda de Seu Chico de Tomé, 106 anos completados no dia 15 de abril de 2000, o mesmo dia em que eu fiz 26, me contando sobre as antigas festas do quilombo. Guardo principalmente a força e a militância consciente de Carmo Joaquim, o líder de Barra/Bananal. Perguntei a Carmo o que sobrava para a comunidade como benefício de serem reconhecidos quilombolas e de terem agora o título de posse das suas terras. Ele, com um olhar tão sereno de homem calejado me respondeu: “Sobrou a certeza de sermos filhos de homens livres, mas que por viverem à margem do processo de desenvolvimento dessa região, ficaram cativos da pobreza”.
Comecei o extenso post falando do ato presidencial em reconhecer mais 30 comunidades quilombolas no Brasil. Ainda não tive a oportunidade de retornar ao Rio das Rãs e a Barra/Bananal para saber como vivem hoje os primeiros contemplados pelos títulos, mas espero que o documento tenha representado para eles, bem mais que um pedaço de papel e uma cerimônia simbólica em praça que leva o nome do “poeta dos escravos”.
*A reportagem Quilombos, que relembro neste post a título de making off tardio, foi publicada no Correio Repórter, suplemento de domingo do jornal Correio da Bahia, em 07 de maio de 2000. Foram meus parceiros de viagem na ocasião, o repórter-fotográfico Manu Dias e o super Mário “Batman”, motorista do jornal. O caderno especial sobre os quilombolas, contou com a reportagem que escrevi sobre Rio das Rãs/Barra-Bananal e com reportagens ainda de Mônica Celestino e Agnes Mariano, que contaram a história de Palmares e dos bairros de Salvador que tem relação com a resistência negra (Liberdade e Cajazeiras). Pelo trabalho, recebemos um prêmio em 2001, o Troféu Coelba de Reportagem, iniciativa da concessionária de energia homônima, Sindicato dos Jornalistas da Bahia e Associação Baiana de Imprensa.
Fonte: Mar de Histórias
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